Qualquer um sabe (ou deveria saber) que tribunais não têm a função de monitorar ninguém. Tribunais têm funções típicas de julgar processos, e funções atípicas de exercer sua autoadministração. Só isso. Entretanto, na ditadura judicial brasileira, vários integrantes do Tribunal Superior Eleitoral acharam que era ok criar um departamento estilo soviético para monitorar pessoas nas redes sociais.
Um juiz de carreira (caso não seja um depravado moral, obviamente), sentir-se-ia bem desconfortável na função de polícia do pensamento, pois, no fundo, sabe que esse não é seu papel constitucional. Entretanto, para aquele tribunal, isso não foi um problema. Aliás, quando colocamos a lupa mais pra perto, vemos que ali, na verdade, não há juiz de carreira algum.
O Tribunal Superior Eleitoral é formado por 7 (sete) membros, sendo 3 (três) ministros do STF, dois ministros do STJ e dois juristas de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Presidente da República. Portanto, o TSE pode ser integramente formado por não juízes.
Atualmente, nenhum integrante do TSE é juiz de carreira, mas eles estão ali julgando assuntos de monumental importância para o país e criando departamentos soviéticos de monitoramento de pessoas. Eles costumam ficar magoados quando cidadãos pedem a extinção do órgão. Aliás, tudo bem se ficassem apenas ressentidos, mas parece que andam considerando essa opinião criminosa também.
Em 2019, logo no primeiro ano da ditadura judicial no Brasil, o TSE criou o “Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação”, instituído durante a presidência da Ministra Rosa Weber. O objetivo declarado de tal programa era “enfrentar os efeitos negativos provocados pela desinformação à imagem e à credibilidade da Justiça Eleitoral, à realização das eleições e aos atores envolvidos no pleito”.[i]
Parece ter escapado aos integrantes do TSE que o Judiciário não tem a função de enfrentar nada. Aquelas togas pretas estão confundindo as cabecinhas fracas dos juízes, fazendo-os se sentir uma espécie de super-heróis que vão salvar o mundo dos malvadões. Esqueceram-se completamente de suas funções constitucionais que, definitivamente, não englobam monitorar a internet para enfrentar nada.
Naquela época, o TSE divulgou em sua página que esse “programa de enfrentamento à desinformação” seria dividido em seis eixos temáticos: 1) Organização interna; 2) Alfabetização midiática e informacional; 3) Contenção à desinformação; 4) Identificação e checagem de desinformação; 5) Aperfeiçoamento do ordenamento jurídico; 6) Aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos.
Desses eixos, três chamam a atenção pela evidente característica censora. O eixo da “alfabetização midiática e informacional” coloca o TSE como uma espécie de bedel do cidadão. Segundo o site, este eixo teria o objetivo de “capacitar as pessoas para identificar e checar uma desinformação, além de estimular a compreensão sobre o processo eleitoral”. Aliás, o termo “alfabetização informacional” é assustador, e demonstra bem o estágio da ditadura judicial brasileira, que considera ter o poder de reeducar o cidadão para que ele tenha as opiniões certas…
O eixo da “contenção à desinformação” é apresentado como a instituição de medidas concretas para desestimular a proliferação de informações falsas. Não está claro o que eles consideram como informações falsas e nem quais medidas seriam essas. Pelo menos até aqui, o que se tem visto é que eles consideram críticas e opiniões desfavoráveis como informações falsas. Eles não podiam dizer, mas as medidas concretas, como descobrimos depois, foram as de censura.
O eixo da “identificação e checagem de desinformação” aparece como a “busca do aperfeiçoamento e novos métodos de identificação de possíveis práticas de disseminação de conteúdos falaciosos”. É uma forma bonita de descrever a atividade da Stasi do judiciário, atuando no monitoramento dos cidadãos brasileiros.
O Programa de Enfrentamento à Desinformação, criado em 2019 para as eleições 2020, acabou se tornando permanente em 2021, após a assinatura da Portaria TSE 510/2021, pelo então presidente do TSE, Luis Roberto Barroso.
No ano seguinte, em março de 2022, o TSE avançou na profissionalização da censura, criando a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, na gestão do ministro Luiz Edson Fachin. A assessoria é um componente chave do Programa de Enfrentamento à Desinformação. O assessor-chefe da pasta, Frederico Alvim, disse à época que “o maior objetivo do programa é intensificar o trabalho desenvolvido desde a última eleição para que a escolha dos eleitores por meio do voto seja legítima, sem interferência de campanhas difamatórias”.[ii]
Pelo que se pôde perceber nas eleições 2022, o TSE, embora dissesse estar preocupado com campanhas difamatórias que interferissem no pleito, não permitiu a divulgação de informações verdadeiras – porém desonrosas – sobre Lula, que diziam que ele mantinha ligações com os ditadores Maduro e Ortega), mas permitiu docilmente a disseminação de adjetivos difamatórios contra Jair Bolsonaro, indiscriminadamente chamado de “genocida”, mesmo nunca tendo participado de genocídio algum.
Um deputado opositor a Bolsonaro, André Janones, chegou a acusá-lo publicamente de pedofilia durante o período eleitoral, além de outras invenções, tendo o deputado, posteriormente, publicado um livro em que confessa ter postado diversas mentiras sobre Jair Bolsonaro para desestabilizar a candidatura deste. O TSE chegou a determinar que Janones apagasse algumas postagens, mas não se tem notícia de qualquer outra medida mais rigorosa aplicada contra o deputado mentiroso, sendo certo que seu perfil no X nunca sofreu qualquer bloqueio, como ocorreu com centenas de outras pessoas do espectro político da direita.
Em 12/03/2024, o TSE deu mais um passo na direção da censura, inaugurando o CIEDDE – Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia, sob a presidência do ditador Alexandre de Moraes. Houve uma cerimônia constrangedora, com a presença de outras autoridades e cobertura da imprensa militante. Ministra Carmem Lúcia e o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, estavam lá.
A logomarca do CIEDDE é evidentemente semelhante ao “olho do grande irmão”, da distopia 1984 de George Orwell. Não se sabe até que ponto essa semelhança foi uma triste coincidência ou um sarcasmo explícito.
O TSE não tem atribuição para criar um órgão dessa natureza, e basta consultarmos a Constituição e o Código Eleitoral para constatar isso. Observe que, enquanto ao particular é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, ao agente público só é permitido fazer aquilo que a lei expressamente prevê. E não há qualquer previsão sobre monitoramento de cidadãos pelo TSE. Vejamos:
O artigo 121 da Constituição Federal diz que a competência do TSE deve ser definida por lei. Portanto, a Constituição delega à lei estipular o que o TSE pode fazer.
Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.
A lei em questão é o Código Eleitoral, que estabelece as competências do TSE nos artigos 22 e 23, que nada falam a respeito de competência para monitorar cidadãos. O TSE deve cuidar de registro de partidos políticos, crimes eleitorais, impugnações a candidaturas, criação e extinção de zonas eleitorais, fornecer respostas às consultas eleitorais, etc. Não há previsão legal permitindo ou determinando ao TSE que faça monitoramento de cidadãos em redes sociais, o que torna o CIEDDE um órgão ilegal.
Ademais, é evidente que não poderia mesmo o Poder Judiciário, por um departamento interno, agir de ofício como se fosse um promotor de justiça, apresentando o caso para que ele mesmo julgue.
O CIEDDE funciona como um investigador e acusador à margem da lei que o TSE criou para jamais voltar a ser escravo do princípio da inércia da jurisdição.
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