No dia seguinte ao sepultamento do primeiro preso político morto pela ditadura judicial de Alexandre de Moraes, o subserviente consórcio da imprensa já aprontou das suas, tentando livrar a cara do imperador.
Os periodiqueiros lançaram a isca: “André Mendonça, indicado por Bolsonaro, foi quem negou HC ao bolsonarista que morreu na Papuda”. Com isso, os puxa-sacos tentam fazer com que os bolsonaristas voltem seus canhões contra Mendonça, retirando Alexandre da linha de frente de responsabilidade por esta morte. A Revista Fórum chegou a colocar na manchete a palavra "reviravolta" como um gancho pega-trouxa, como se a história tivesse dado um grande plot-twist. Soltaram a famosa cortina de fumaça – convenhamos, um truque muito vagabundo. Nós percebemos, revista Fórum.
Está claro que a responsabilidade primária é de Moraes, assim como também está claro que Mendonça decidiu de forma pusilânime. Estamos diante daquele tipo de situação em que todos estão errados - uns mais errados do que outros. "Errado", claro, é um eufemismo.
Todos sabem bem qual foi a conduta de Moraes nesta história toda, mas poucos entenderam a de Mendonça. Vou analisar aqui a decisão deste último. Sobre ele, vi tanto acusações como "passações de pano". É necessário categorizar melhor a conduta de Mendonça, dando a ela exatamente a medida que merece. Além de ser importante documentar a pusilanimidade do argumento por ele utilizado para denegar o HC, não vi ninguém trazendo os detalhes que vou mostrar aqui. Não se engane: deixo claro, desde já, que o culpado principal é o Moraes. Dito isso, vamos à análise:
Mendonça não analisou o mérito do habeas corpus porque aplicou a súmula 606 do STF por analogia. Não havia nenhuma lei que o proibisse de decidir o mérito do HC. Ele aplicou uma súmula. E essa súmula sequer se enquadrava exatamente na hipótese, a não ser por analogia. Ele disse o seguinte:
“Mostra-se incabível a impetração, uma vez voltada contra ato de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Conforme o enunciado nº 606 da Súmula do STF: ‘Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso’. Com efeito, esta Suprema Corte firmou o entendimento de não ser cabível habeas corpus contra ato de Ministro ou de Órgão colegiado do STF, em virtude da incidência, por analogia, do referido verbete” (Trecho da decisão de André Mendonça proferida no dia 27/02/2023). (grifos nossos)
Como se sabe, o STF é composto de duas turmas com cinco ministros cada (o presidente da corte fica de fora). Já o plenário é composto por todos os onze. O tal verbete 606 – que nem lei é – veda o habeas corpus contra ato de órgãos colegiados (turma ou plenário), não de um ministro individualmente (decisão monocrática).
Portanto, o que Mendonça fez foi aplicar o entendimento do entendimento: a súmula 606 (que é tão somente um “entendimento” do Tribunal, não uma lei), sofreu mais um entendimento (?!), tendo os ministros, em algum momento histórico, interpretado que a súmula deveria abranger também as decisões monocráticas, embora não o tenha dito. Em breve, veremos o entendimento do entendimento do entendimento. A segurança jurídica no Brasil, meus amigos, já é parte integrante e indissociável do anedotário nacional.
Portanto, só para começar: é claro que André Mendonça não estava vinculado nem à Súmula, nem ao entendimento (?!) informal sobre tal verbete. Com altivez, poderia ter matado no peito e lançado uma decisão original, liderando uma mudança de paradigma na corte.
O que eu não estou vendo ninguém dizer é o que vou te contar agora: em 2020 foi julgado o HC 130620/RR, Relator Min. Marco Aurélio Mello, quando então houve uma modificação do, errr, digamos, entendimento...o HC passou a ser cabível contra decisões monocráticas no STF. Eis o voto vencedor, do Relator Marco Aurélio Mello:
“V O T O
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – O habeas corpus é cabível contra decisão formalizada por integrante do Supremo, valendo notar que o verbete nº 606 da Súmula alcança ato de Colegiado, e não individual. Rejeito a preliminar apontada pela Procuradoria-Geral da República.
Destaco, ainda, o voto do Min. Gilmar Mendes naquele HC, citando até mesmo o Pacto de São José da Costa Rica para justificar o cabimento de HC contra decisões individuais de ministros do STF:
“Ressalvo, contudo, posição sobre o cabimento da ação, visto que os limites de aplicabilidade da Súmula 606 deste STF precisam ser discutidos com profundidade pelo Plenário em sessão presencial. Como já afirmei anteriormente, embora a posição majoritária, consagrada na Súmula 606 do STF, seja no sentido de que não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso, penso que tal visão deve ser analisada com cautela. Ressalvo o meu entendimento no sentido de ser cabível habeas corpus em face de decisão de Ministro desta Corte, sob pena de estarmos exacerbando sobremaneira os poderes monocráticos, fazendo do relator um verdadeiro soberano, um monarca absoluto. E, como asseverei no julgamento do HC 152.707, o Estado de Direito não comporta soberanos. Tenho que o art. 5º, LXVIII, e o art. 102, I, d, da CF, combinados com artigo 7º, § 6º, e artigo 25, § 1, do Pacto de San José da Costa Rica, e artigo 9, § 4, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos devem ser lidos de forma a afirmar o cabimento da ação de habeas corpus, por relevante, para assegurar a proteção judicial efetiva.” (Min. Gilmar Mendes, voto no HC 130620/RR)
Observem que Gilmar Mendes disse expressamente que o não cabimento de habeas corpus contra decisão monocrática do relator faria com que este se tornasse "um verdadeiro soberano, um monarca absoluto". Concordo com você nessa, Gilmar.
Votaram pelo cabimento de HC contra decisão monocrática no STF os ministros Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Pelo não cabimento, votaram Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Carmen Lúcia se deu por impedida, e não foram disponibilizados os votos de Rosa Weber, Barroso, Lewandowski e Celso de Mello.
Assim ficou o acórdão, ao final:
“Cabe habeas corpus contra decisão monocrática de Ministro do STF.
O habeas corpus é cabível contra ato individual formalizado por integrante do Supremo.
STF. Plenário. HC 130620/RR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 30/04/2020.”
Portanto, como demonstrado acima, não só havia intensa controvérsia entre os membros da corte a respeito da possibilidade de HC, como havia mesmo um precedente neste sentido. Assim, era perfeitamente possível a André Mendonça decidir favoravelmente a Cleriston. Mas eu vou além.
Digamos, por hipótese, que realmente houvesse alguma previsão legal vedando o HC, ou mesmo que o entendimento jurisprudencial fosse absolutamente consolidado (o que, como vimos acima, não era). Ainda assim, podemos verificar que André Mendonça teria perdido uma baita oportunidade de fazer uma bela peça processual para registro histórico, discorrendo sobre todo o ocorrido, adentrando no mérito, ainda que denegando, ao final, por motivo de não cabimento.
Não é aceitável um ministro da suprema corte, em plena ditadura judicial, receber um HC desta natureza (preso político) e simplesmente dar um despacho de um parágrafo negando o pedido alegando questão formal. Isso é inadmissível.
Mas, mais inadmissível ainda, é mandar prender alguém (sem foro privilegiado) apenas por estar em uma manifestação política “do lado errado”. A conduta de Moraes é muito mais inadmissível do que a de Mendonça. Existe uma escala de gradação.
André Mendonça deu uma decisão pusilânime, e a imprensa está querendo chamar atenção a isso para que esqueçamos um pouco de Alexandre de Moraes. Aqui, não. Não esqueceremos. Sabemos muito bem quem é o principal responsável pela ditadura que está acontecendo no Brasil.
Na escala de gradação entre a pusilanimidade e a maldade em estado bruto, há uma grande diferença. Jamais devemos perder o senso das proporções. Foquem em Alexandre de Moraes.
_____________________________________________________
⚠️ Este é um trabalho independente, artesanal, feito com muito amor, estudo e dedicação 📚. Se você acha esta atividade relevante, considere se tornar um apoiador (supporter💰), financiando meu trabalho, viabilizando publicações como essa e a continuidade deste canal, além de ter acesso aos conteúdos exclusivos para assinantes. ✅