Nexo causal. Repitam comigo, mais uma vez: NEXO CAUSAL.
Essa será uma expressão que, a partir de agora, repisaremos dia sim, outro também. A morte do preso político Cleriston Pereira da Cunha, o “Clezão”, foi o resultado de uma sequência de ações e omissões humanas. Essas ações e omissões, sem as quais o resultado morte não teria ocorrido, são chamadas causas.
Compreendam uma coisa: a expressão “nexo causal” não é apenas um dito comum de nosso idioma. Trata-se também de postulado crucial e elementar de Direito Penal. É um termo técnico. A relação de causalidade é uma coisa tão preciosa em nosso ordenamento jurídico que chega a ter um artigo só para ela: o artigo 13 do Código Penal.
Relação de causalidade
Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”
Hoje tivemos a primeira morte dentre os presos políticos do 8 de janeiro. “Clezão”, de 46 anos, morreu no presídio da Papuda, mesmo com parecer da Procuradoria Geral da República pela sua soltura. Sejamos francos: esse tipo de morte era mais do que previsível. Foi uma tragédia anunciada, assim como outras que ainda advirão caso Moraes não seja contido.
Sim, meus amigos. Está claro que outros presos políticos morrerão no cárcere, pois estão sendo tratados como cidadãos de última categoria. Para eles, não há prazos, devido processo legal, sistema acusatório, como há para homicidas e estupradores. Ao que parece, o setor de prerrogativas só funciona para traficantes e afins. As donas jupiras podem ficar sem o devido processo, não tem problema!
A defesa de Cleriston fez um pedido de revogação da prisão preventiva em maio de 2023, em uma manifestação de dezenove páginas. Sustentou, dentre outros argumentos, o cerceamento de defesa, pois não obteve documento, foto, vídeo ou mensagens contidos nos autos que demonstrassem a conduta dele. Além disso, alegou excesso de prazo (prisão superior a 90 dias), ausência de reavaliação da necessidade da prisão, bons antecedentes, residência e trabalho fixos, colaboração com as investigações mediante entrega voluntária do aparelho celular e senha, além de comprovar documentalmente a existência de doença e a impossibilidade de o sistema prisional prover as necessidades de sua enfermidade.
Na petição, consta expressamente a informação de que Cleriston tinha a saúde debilitada em razão de sequelas de Covid-19. A defesa apresentou também laudo assinado pela médica Tania Maria Liete Antunes de Oliveira, indicando vasculite de múltiplos vasos, miosite secundária à Covid-19, submissão a tratamentos e inúmeros remédios, contendo ainda a seguinte recomendação expressa:
Em função da gravidade do quadro clínico, risco de morte pela imunossupressão e infecções, solicitamos agilidade na resolução do processo legal do paciente, até pelo risco de nova infecção por Covid que pode agravar o estado clínico do paciente. Possuía consulta no ambulatório de reumatologia do HRT agendado para dia 30 de janeiro de 2023, às 13 horas, mas não compareceu devido ao impedimento legal. Não compareceu à consulta dia 27-02-23 devido à mesma situação. Necessita manter o acompanhamento médico contínuo e uso das medicações prescritas de forma correta”.
O laudo médico, portanto, revela que, ao menos por duas vezes, Cleriston deixou de receber o atendimento médico de que necessitava, além de alertar claramente a respeito do risco de infecções que ele corria dentro do presídio em decorrência de suas comorbidades.
A médica que acompanhava Cleriston solicitou vários exames que não se sabe se teriam sido realizados:
Sei muito bem que é comum advogados fazerem pedidos de revogação de prisão preventiva alegando qualquer unha encravada como doença, sob a epígrafe em caixa alta: “RISCO DE MORTE!” – às vezes com vários pontos de exclamação. Eu não estou brincando. Eu via isso quase todo dia. Cabe ao juiz perceber a situação, desconfiar de eventuais exageros, oficiar ao estabelecimento prisional requerendo informações sobre se tem condições ou não de prover o tratamento médico ao preso.
No caso de Cleriston, como pudemos ver pelo laudo, nem seria necessário oficiar ao presídio. Já estava documentado que ele havia deixado de comparecer ao atendimento em duas oportunidades, e que as comorbidades que ele apresentava eram incompatíveis com o ambiente prisional. Por isso, o advogado requereu que Cleriston respondesse em liberdade, ou, no máximo, fosse posto em prisão domiciliar, além de ter feito um pedido expresso de prestação de atendimento médico.
O Procurador da República Carlos Frederico dos Santos se manifestou sobre o pedido da defesa no dia 1º de setembro de 2023, mais de três meses após a formulação do pedido, pelo provimento do pleito que havia sido formulado pela defesa de Cleriston. Carlos Frederico disse em seu parecer que:
não mais se justifica a segregação cautelar, seja para a garantia da ordem pública, seja para a conveniência da instrução criminal, especialmente considerando a ausência de risco de interferência na coleta de provas”.
Assim, o parecer do MPF foi pela imediata soltura de Cleriston, com imposição de medidas cautelares diversas da prisão, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica.
Dois meses e meio se passaram após a manifestação do MPF, e Alexandre de Moraes não despachou o pedido – embora se tratasse de réu preso. Ontem, dia 20 de novembro de 2023, Cleriston morreu. A repercussão do caso fez com que Alexandre, enfim, despachasse o processo, mais de seis meses depois do pedido de revogação de prisão, e dois meses e meio após o parecer do MPF pela soltura de Cleriston. Mas já era tarde.
Alexandre de Moraes tenta afetar preocupação oficiando ao Centro de Detenção Provisória II, requisitando “informações detalhadas sobre o fato, inclusive com cópia do prontuário médico e relatório médico dos atendimentos recebidos pelo interno durante a custódia”. O cinismo dele é comovente. Sabemos que não se trata de preocupação com a capacidade de o presídio fornecer atendimento médico, mas sim, fingimento histérico, simulando estar tomando grandes providências judiciais ante a direção do presídio, quando a responsabilidade é inteiramente dele. Sabemos o que você fez, Alexandre. Não precisa fingir.
Aliás, segundo informações apuradas pelo deputado Marcel Van Hattem, constam informações nos autos no sentido de que Cleriston recebera mais de trinta atendimentos médicos na Papuda, o que significa que o presídio não o negligenciou, ao contrário: estava fazendo o que estava a seu alcance a alguém que já era para estar solto. Quem o negligenciou foi Alexandre de Moraes.
Alexandre não vai querer essa batata assando pro lado dele, e vai tentar empurrar a responsabilidade ao diretor do presídio, ou até mesmo à Dr.ª Leila Cury, da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, que não tem nenhum poder decisório quanto ao processo que corre no STF contra Cleriston (e, portanto, não poderia soltá-lo). É a velha máxima, “a culpa é minha, eu ponho em quem eu quiser”. Mas, aqui não, Alexandre. A responsabilidade é sua. Segura, que o filho é teu.
Agora, vamos voltar ao nexo causal. Como vimos, o artigo 13 do Código Penal responsabiliza aquele que dá causa ao resultado, e estabelece claramente que essa causa pode se dar por ação e por omissão. É causa tudo aquilo que chamamos conditio sine qua non, ou seja, condição “sem a qual não”: condição sem a qual o resultado não aconteceria.
Para saber uma coisa é causa, basta suprimi-la mentalmente do curso causal, e verificar se o resultado aconteceria do mesmo jeito. Exemplo: Tício quer furtar a casa de Mévio, e pede ajuda da empregada da casa para que seja sua cúmplice, abrindo-lhe a porta e o deixando entrar. Se a empregada não abre a porta, Tício não entra na casa, e o furto não acontece. A abertura da porta pela empregada é conditio sine qua non para o resultado furto residencial. É causa. Assim, a empregada será responsabilizada criminalmente pelo resultado furto.
No exemplo acima, a empregada participou do furto praticando uma ação (abertura intencional da porta). Entretanto, a causa também pode ser uma omissão. Digamos que o criminoso peça para que o caseiro da fazenda faça vista grossa enquanto entra e subtrai bens móveis e animais, em troca de vantagem financeira. O caseiro simplesmente não faz nada. Nesse caso, a omissão dolosa do caseiro leva ao resultado furto. Se retirarmos mentalmente a omissão do caseiro no curso causal, o furto não teria acontecido (ao menos não daquela forma facilitada).
Aqui, no caso do caseiro, temos o chamado agente garantidor, que é aquele que tem o dever legal de agir. Uma pessoa qualquer que vê um furto acontecendo até pode tentar impedi-lo, mas não tem essa obrigação de atuar. Já o caseiro tem justamente a função de zelar pela casa, não podendo fazer vista grossa, fingindo que não viu o meliante, deixando-o furtar o que bem entende. Ele é agente garantidor e, portanto, responde pelo resultado furto. Essa previsão está no artigo 13, §2º do Código Penal:
Relevância da omissão
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (...)”
Outro exemplo: se você vê alguém se afogando na piscina e, podendo fazer, não faz nada, você responde por omissão de socorro, a não ser que você seja um salva-vidas (agente garantidor), hipótese em que você responderá por homicídio consumado ou tentado, conforme o resultado que vier a ocorrer.
O mesmo raciocínio acontece com todas as arbitrariedades praticadas por Alexandre de Moraes. Ele as comete por ação. Ele abre os inquéritos ilegais, mantém pessoas presas arbitrariamente, atua como vítima, acusador e julgador ao mesmo tempo, dentre outros absurdos. Moraes atua ativamente, e quanto a isso não há qualquer discussão. Se suprimirmos Moraes mentalmente do curso causal, não haveria inquéritos ilegais, Cleriston não teria sido preso ilegalmente e, por consequência, não teria morrido como morreu.
Ao instaurar inquéritos inconstitucionais e efetuar milhares prisões políticas a granel, de uma tacada só, Moraes atribui a si próprio poder persecutório inexistente no ordenamento jurídico, e arrasta consigo, consequentemente, a responsabilidade de tudo o que acontecer àquelas pessoas a partir dali. Sabendo da dificuldade de o presídio prover as necessidades físicas imediatas dos presos (muitos idosos ou doentes), além da incapacidade de seu próprio gabinete despachar em tempo hábil, Alexandre pode até não desejar diretamente a morte de ninguém (dolo direto), mas assume o risco da ocorrência desse resultado, caso venha a ocorrer. Estamos aqui diante da figura do DOLO EVENTUAL.
Nosso ordenamento jurídico penal não faz distinção entre as responsabilidades de quem agiu com dolo direto ou com dolo eventual. O dolo eventual leva à mesmíssima responsabilidade do dolo direto.
Alexandre é causa do resultado morte, por via direta de ação na condução de inquéritos ilegais que levaram ao resultado danoso, mediante dolo eventual (sabe do risco do resultado e o aceita) ou, no mínimo, por omissão imprópria (agente garantidor), uma vez que tinha o dever de agir para impedir o resultado e não o fez. Como agente garantidor, incide na tipificação homicídio consumado, duplamente qualificado pelo motivo torpe (fins políticos) e mediante uso de tortura, conforme previsão do artigo 121, §2º, I e III do Código Penal.
Enquadrar Alexandre de Moraes no crime de homicídio duplamente qualificado não demanda grandes raciocínios, porque é de uma obviedade ululante. Quanto a Rodrigo Pacheco, a questão é levemente mais sofisticada, mas também não chega a ter grandes dificuldades. Como vimos, a causa do resultado pode se dar via omissão e, para isso, basta suprimir a omissão de quem deveria agir para saber se o resultado aconteceria.
No caso aqui tratado, Pacheco tem o dever constitucional de agir, colocando em pauta o processo por crimes de responsabilidade de ministro do Supremo Tribunal Federal (artigo 52, II da CF e art. 8º Regimento Interno do Senado).
Sendo públicos e notórios os crimes de responsabilidade praticados por Moraes (divulgados até mesmo na imprensa internacional, como New York Times, Wall Street Journal e The Spectator), não cabe a ele alegar desconhecimento. Colocar em pauta impeachment de ministro do STF em casos notórios como esse não é uma faculdade, é um dever constitucional. Acaso Pacheco tivesse agido, toda a cadeia causal teria sido outra, com o afastamento de Moraes, a queda dos inquéritos ilegais, o desencorajamento dos demais ministros em adotar a mesma postura ditatorial e, com isso, a soltura dos presos políticos.
Assim, suprimindo-se mentalmente a omissão de Pacheco, tem-se que o resultado morte de Cleriston não aconteceria, ao menos da forma como ocorreu, o que o coloca como causa, pois deveria ter agido para evitar o resultado, e não agiu. Só Pacheco poderia iniciar o procedimento de afastamento de Moraes, de forma que apenas ele é o garantidor de todos aqueles a quem Moraes injustiça. Pacheco não só tem o dever legal de agir, como SÓ ELE pode agir, o que torna seu dever como agente garantidor ainda mais crucial. Nexo causal configurado por omissão imprópria. Pacheco é agente garantidor na forma do art. 13, §2º do CP. Sabe do que ocorre, tem o dever legal de agir e não age. Responde pelos mesmos crimes de Alexandre de Moraes, enquanto permanecer omisso, lembrando que a prescrição em abstrato do crime de homicídio é de vinte anos.
Ou seja: dentro dos próximos vinte anos, havendo alguma moralização política no Brasil, com uma suprema corte realmente independente, não apenas Moraes, mas Pacheco e todos os outros que compõem o nexo causal poderão responder a processos criminais pela morte de Cleriston e pelas demais que vierem a ocorrer entre os presos políticos durante a atual ditadura do judiciário - sem contar as demais violações constitucionais incruentas.
Se avançarmos mais adiante no curso do nexo causal da morte de Cleriston, além dos inquéritos ilegais de Moraes e da omissão de Rodrigo Pacheco, podemos ainda chegar em uma instituição que, até bem pouco tempo, era respeitada pela população, e hoje é vista com desprezo. As Forças Armadas, como se sabe pela boca do próprio General Gustavo Dutra Menezes, protagonizaram o famoso “Dia da Perfídia”, fazendo as senhorinhas entrarem nos ônibus pensando que estavam sendo protegidas, quando estavam sendo levadas para o campo de concentração da Polícia Federal.
Se excluirmos mentalmente essa conduta vergonhosa das Forças Armadas, aqueles manifestantes não teriam sido presos e, portanto, não estariam passando hoje por essa situação de tortura estatal. As Forças Armadas, no curso causal, tiveram papel indissociável a tudo o que as vítimas do 8 de janeiro estão passando agora e, portanto, estão umbilicalmente ligadas aos atos de Moraes.
Aliás, hoje, no dia seguinte à morte de Cleriston, enquanto os familiares aguardavam a liberação do corpo, Lula condecorava Alexandre de Moraes com a mais alta medalha da Ordem do Rio Branco. Existe um elemento de sadismo bem claro nessa situação toda. Tudo é muito simbólico, está tudo às claras.
Não são apenas Moraes, Pacheco e Forças Armadas que têm as mãos sujas de sangue. Todos aqueles que poderiam fazer algo (ainda que seja escrever um artigo, fazer uma live ou uma palestra) e não fazem, também têm umas gotinhas respingadas em suas mãos.
Toda a classe jurídica que, nesse momento, se encontra exercendo suas lamentações exclusivamente em grupinhos de zap – sem se dar ao trabalho de escrever um livro, ou um artigo que seja – tem as mãos sujas de sangue por omissão, em algum grau. Ninguém aceita correr nenhum grau de risco (muitos amigos queridos meus, inclusive). A omissão dessas pessoas deixa os ditadores muito mais à vontade para fazerem o que bem entendem – inclusive, causando mortes.
Professores de Direito Penal, Processo Penal e Constitucional têm agravantes contra si. Esses aí têm o dever moral de apontar as violações legais e constitucionais. Mas, claro... falar durante uma ditadura é muito arriscado, não é mesmo? A omissão dessa categoria também aconteceu durante o Terceiro Reich, conforme narrado nos escritos de Eric Voegelin. Está acontecendo agora também, tudo igualzinho. Ainda bem que estou fora dessa. Eis-me aqui, pela trocentésima vez, expondo a ditadura sem tarjas, sem meias-palavras, no seco, e sofrendo todas as consequências que podem disso advir. Penso que é melhor sofrer as consequências aqui, do que na outra vida. Sou uma professora de Direito, e tenho o dever legal de agir de acordo com minhas habilidades e possibilidades. Escrever este artigo jurídico e documentar a ditadura está entre as coisas que consigo fazer. Aqui está, pois.
Os crimes que estão acontecendo via força estatal, já há quatro anos – e que só pioram – se enquadram nos crimes contra a humanidade previstos pelo Estatuto de Roma (art. 7º, n. 1, alíneas “e” e “h”), mais especificamente a prisão ou outra forma de privação de liberdade física grave em violação das normas fundamentais de direito internacional, e a perseguição de grupo ou coletividade por motivos políticos.
Todos os que estão no curso causal são conditio sine qua non destes crimes, e deverão receber a devida responsabilização cível e penal, lembrando que, nas cortes internacionais, os crimes contra a humanidade são imprescritíveis, os responsáveis no nexo de causalidade dos acontecimentos são notórios, e já não é mais possível fingir que não tem nada acontecendo no Brasil. Aguardemos a história e seu curso causal.
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