A contribuição do Poder Judiciário para a atmosfera ditatorial no Brasil tem sido inestimável. Lendo as notícias do Bananil, deparo-me com mais uma pérola de bosta proveniente da tirania de toga: uma escritora foi condenada a pagar indenização a uma pessoa por causa de uma obra...de ficção.
Conforme fui lendo a matéria, fui entendendo como isso foi possível. Na verdade, saquei tudo logo no início: a suposta vítima das ofensas é um juiz togado. Ora, ora...não um supremo, mas ainda assim um juiz, de primeira instância. Tudo agora fez sentido, não porque eu concorde com a decisão (muito pelo contrário), mas porque este tipo de indecência em favor dos seus está congruente com as cagadas supremas que têm afrontado nosso senso de justiça todos os dias.
A perseguição contra a escritora e advogada Saíle Bárbara Barreto começou em 2021, quando foi denunciada pelo Ministério Público de Santa Catarina por injúria, calúnia e difamação. Isso se deu em razão de ela ter supostamente se inspirado em um juiz da comarca de São José para compor um personagem da obra “Causos da Comarca de São Barnabé”.
O livro mostra o personagem chamado Floribaldo Mussolini, juiz do juizado especial cível do Tribunal de Justiça de Santa Ignorância, na República Federativa da Banalândia, como um sujeito corrupto, mesquinho, envolvido em esquemas. O juiz da vida real que processou Saíle se chama Rafael Rabaldo Bottan, que teria alegado as coincidências entre seu nome (Rabaldo/Floribaldo), a vara (juizado especial cível) e representações pretéritas para alegar que a obra se referia a ele.
A argumentação do promotor é risível: “a ridicularização pública de um magistrado atenta contra o próprio poder judiciário, fomentando o ódio e a maledicência contra as estruturas de poder, abalando a ordem pública”. Isso me lembra uns sentimentalismos que eu ouvia sempre na época da escola judicial, como “ser juiz é um sacerdócio”, e outras tosquices (aliás, aturar ficar ouvindo essas breguices beirava o insuportável. Qualquer dia eu falo mais sobre isso).
Essa coisa de dizer que ofender um agente público, na pessoa física, é como se atentasse contra toda a instituição para a qual ele trabalha é algo ridículo. É duvidar demais da capacidade de orientação das pessoas achar que se eu xingar o juiz X de Macapá, no CPF, todo o poder judiciário – abstrato e sem rosto –, será afetado com a minha crítica. Esse posicionamento parece até aquele slogan das manas de cabelo roxo: “mexeu com um, mexeu com todes”! Pior é ver uns caras barbados de cinquenta e poucos anos entrando nessa.
Saíle foi condenada a pagar a Rafael cinquenta mil reais de indenização, além de ter que remover postagens criticando decisões judiciais em sua página de Facebook. Não vi as postagens, pois já devem ter sido apagadas, mas me parece legítimo criticar decisões judiciais, não? Pelo menos em países democráticos é assim, você tem direito de sentar o pau na decisão judicial que bem entender. Mas a Banânia não é um país democrático há alguns anos, então não é de se espantar uma decisão que proíba o cidadão de criticar. Hoje, só é possível aplaudir.
Você poderia argumentar que eu estou escrevendo isso só porque não foi comigo. Bem, nesse caso (assim como em todos os outros), eu sempre faço um esforço imaginativo para refletir sobre o que eu faria se eu estivesse no lugar do cara (nesse caso, do juiz Rafael).
Primeiramente, temos que ter em mente que, na ficção, os autores têm liberdade para inventar situações, acrescentar cenários, e tudo o mais que a imaginação for capaz. Em uma situação hipotética, se alguém escrevesse um livro ficcional me usando como inspiração para um personagem ruim ou criminoso, eu não sairia reivindicando aquele personagem, “ei, essa sou eu!”. Entretanto, é provável que eu não deixasse barato. Talvez eu escrevesse um conto utilizando o sujeito como inspiração também, com todos os floreios que minha imaginação permitisse.
Em segundo lugar, eu jamais daria ao autor-hater a publicidade que ele deseja. Enfiar-se numa treta dessas significa emprestar seu nome para que o outro cresça pisando na sua cabeça. Nos últimos anos passei por isso várias vezes. Toda hora um completo desconhecido me desafiava no Twitter: “vem debater comigo no meu canal de YouTube, se não aceitar é porque não se garante”! Os caras queriam crescer na minha audiência, e eu sempre os deixei falando sozinhos. Pensando por esse lado, talvez eu sequer escrevesse o conto que mencionei no parágrafo anterior.
Enfim, o tal processo chegou ao STF, e Alexandre de Moraes mandou aquela de sempre: “não houve nenhuma restrição que ofendesse a proteção da liberdade de manifestação”. Bem, no caso a Dr.ª Saíle teve que apagar as críticas a decisões judiciais das suas redes, além de ficar proibida de “fazer novas publicações de cunho difamatório, calunioso ou ultrajante” sob o risco de multa. Se isso não é uma restrição à liberdade de manifestação, o que é?
Como é possível estabelecer proibições de manifestações futuras às quais nem se sabe se alguém se consideraria ultrajado? Sabemos bem que o Sr. Alexandre não tem grandes problemas em estabelecer a famosa “censura prévia”, que foi o que evidentemente aconteceu. Nada pra ver aqui. Circulando!
Carmen Lúcia e Zanin seguiram o voto do imperador para censurar a escritora na cara dura. Sabem quem, no entanto, votou certo, igual relógio parado? Ele mesmo, Barroso, o Perdeu-Mané!
Barroso divergiu dos votos de Moraes-Carmen-Zanin, esclarecendo que:
“não houve a imputação de crime ou discurso de ódio. As ordens de remoção de conteúdo e de abstenção de realização de novas publicações com conteúdo difamatório tendem a gerar um efeito silenciador que se difunde por toda a sociedade, materializando-se na inibição de críticas e, em última análise, na construção de um ambiente mais favorável à livre circulação de ideias. (...) Além disso, a obrigação de não fazer imposta pela sentença, consubstanciada na determinação de que ‘a parte demandada se abstenha de promover novas publicações com conteúdo difamatório, calunioso ou ultrajante contra o autor’ caracteriza espécie de censura prévia”.
Consta que, após o voto de Barroso, Luiz Fux teria mudado o voto para acompanhá-lo, mas de qualquer forma o placar ficou 3x2 para o juiz Rafael.
O livro continua à venda na Amazon. Eu imagino que o dedo dos ditadores deva ter coçado para determinar o recolhimento das obras... felizmente, esse Rubicão ainda não foi ultrapassado no Brasil. Censurar livros é algo desprezível em todo o planeta, e isso jogaria muitas luzes sobre a ditadura brasileira. Mas não se animem: do jeito que as coisas andam, eu não duvido de que esse dia chegará.
Ao fim e ao cabo, o fato é que a demanda do juiz contra a escritora fez o livro alavancar. Eu mesma só fiquei sabendo da obra por causa dessa confusão. Não sei se ela terá condições de pagar a indenização, mas de qualquer forma tudo isso gerou efeitos negativos para o juiz, com a vestimenta pública da carapuça que jogou luzes na existência da obra, além de ter protagonizado – como personagem da vida real – mais esse capítulo na recente história da ditadura judicial censora brasileira.